Introdução – Personalidade jurídica e administradores
A personalidade jurídica é uma ficção criada para designar titulares de uma posição própria como sujeitos de direitos e deveres. No Brasil, a personalidade jurídica é geralmente relacionada a organizações ou entidades específicas[1], ditas pessoas jurídicas, diferenciando-se da personalidade civil, relacionada às pessoas naturais – conforme disposto no Código Civil, nos artigos 1º e seguintes, bem como 40 e seguintes.
Em termos práticos, isso significa que, segundo essa teoria, os direitos e obrigações de uma entidade jurídica são exclusivamente desta, como uma entidade separada e distinta de seus sócios, membros ou administradores.
Também é um princípio importante para proteger os interesses dos investidores e administradores de uma empresa, considerando as sociedades anônima e limitada, já que suas responsabilidades são limitadas ao montante de sua participação ou investimento.
No entanto e com base em leis, em certas circunstâncias este princípio é excepcionado, e os tribunais podem “desconsiderar” a autonomia da personalidade jurídica, usando a chamada “teoria da desconsideração da personalidade jurídica”. Nesses casos, as obrigações de uma pessoa jurídica podem ser estendidas às pessoas naturais dos sócios ou dos administradores.
Por sua vez, são considerados administradores aquelas pessoas dispostas no Estatuto Social ou no Contrato Social como tais.
Nesse ponto, é muito importante fixar que os diretores, gerentes e demais denominações que possam existir dentro do organograma de uma empresa, somente são considerados formalmente como administradores se estiverem descritos no contrato/ estatuto social da sociedade. Caso exerçam de fato, mas não constem nesses documentos, não serão considerados como administradores, a priori.
Nas sociedades anônimas, segundo o artigo 138 da LSA, “A administração da companhia competirá, conforme dispuser o estatuto, ao conselho de administração e à diretoria, ou somente à diretoria”. Assim, neste tipo societário, os administradores são os conselheiros e os diretores.
Já nas sociedades limitadas, encontramos no artigo 1.060 do Código Civil a definição de que “A sociedade limitada é administrada por uma ou mais pessoas designadas no contrato social ou em ato separado”[2].
Em suma, portanto, são considerados administradores as pessoas naturais formalmente designadas para ocupar esse papel. São essas pessoas que possuem autorização para representar essas sociedades, assinando contratos e documentos em nome da organização.
Todavia, muitas vezes existam gestores que não são administradores formais, mas que, a depender do caso, poderão ser enquadrados como administradores de fato e, consequentemente, sofrer responsabilização por atos de gestão.
1.1. Deveres do administrador na Lei das Sociedades por Ações
A LSA (Lei das Sociedades por Ações – Lei 6.404/1976) impõe aos administradores de companhias alguns padrões de conduta, de modo a assegurar a observância do estatuto social e da Lei, bem como do objeto social, dos interesses e da função social da empresa. Tais padrões de conduta subdividem-se em três grupos de deveres: de diligência, de lealdade e de informação.
O dever de diligência está positivado no art. 153 da LSA e se refere ao modo de atuação do administrador. Diz a lei que deve o administrador atuar com probidade, proceder como se fossem seus os negócios administrados. Nas palavras de Gustavo Saad Diniz (2022, p. 255), “a diligência do administrador é qualificada pela presteza, urgência e zelo no cumprimento do objeto social e para assegurar o interesse da sociedade”.
Como pontua Tomazette (2022, p. 244), o referido dispositivo impõe ao administrador uma obrigação de meio, ou seja, a forma como o administrador conduz o os negócios da empresa é o mais importante, e não, necessariamente, os resultados financeiros obtidos, que podem sofrer a influência de uma série de fatores alheios ao administrador. Assim, também não se requer que o administrador seja um especialista no ramo (embora, seja importante que ele procure se habilitar), mas que aja com presteza e zelo no exercício de suas funções.
A lei não especifica em que situações ocorrerá a violação do dever de diligência, de modo que tal dever é uma norma aberta e a conduta do administrador deve ser analisada caso a caso, de forma a constatar sua violação. Adamek (apud Saad Diniz, 2022, p. 255) cita algumas condutas que decorrem do dever de diligência: “comparecer a reuniões do órgão ao qual pertença, desconfiar da inconsistência, informar-se, aconselhar-se, investigar denúncias, qualificar-se para o ramo de empresa com conhecimentos especializados, supervisionar o trabalho de subordinados, não desviar bens, direitos e oportunidades para si ou para terceiros”.
Por outro lado, o dever de lealdade do administrador para com a empresa demanda observar o objeto social dela, bem como agir segundo seus interesses, respeitando os compromissos firmados entre empresa e administrador.
Não há uma definição legal do que é o dever de lealdade, limitando-se a LSA a estabelecer situações não exaustivas de violação de tal dever[3], de modo que, assim como no dever de diligência, a existência de violação do dever de lealdade precisa ser aferida casuisticamente.
Neste contexto, a atuação do administrador deve se dar de modo que este sirva a empresa e não se sirva dela (TOMAZETTE, 2022, p. 245)[4]. Por isso mesmo, deve o gestor manter reserva sobre os negócios da companhia, sem utilizá-los para vantagens e interesses pessoais ou de terceiros. Neste sentido, a Lei veda o uso de informações obtidas em razão da posição do administrador na sociedade em benefício próprio, o que acaba por fornecer o fundamento para a vedação da prática de insider trading.
Daí decorre outro dever por parte do administrador, o chamado dever de sigilo, consistente na vedação ao gestor da disseminação ou uso de informações privilegiadas. Por informações privilegiadas, devem-se entender aquelas informações restritas ao administrador e demais agentes internos da companhia que, porém são capazes de influenciar a cotação dos valores mobiliários (TOMAZETTE, 2022, p. 245-246).
O dever de informação, por sua vez, exige, segundo Gustavo Diniz (2022, p. 256), dois tipos de obrigação do gestor. O primeiro exige que o administrador preste contas aos sócios e os atualize sobre a forma como vem conduzindo a companhia. O segundo, reservado ao contexto das sociedades de capital aberto, exige a transparência do administrador sobre o volume de sua participação na companhia e seus interesses nela. Neste sentido, ele deve declarar o número de ações de sua propriedade, de bônus de subscrição, opções de compra de ações e debêntures de conversíveis em ações, de emissão da companhia e de sociedades controladas ou do mesmo grupo, dentre outras informações a serem prestadas em assembleia ordinária (art. 157 e §§).
É importante ressaltar que tal dever só poderá ser afastado se a disseminação de informações puder ser prejudicial à companhia, porém, mesmo nestes casos, a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) poderá ser chamada a decidir sobre a necessidade ou não de tal sigilo.
Além destes três grupos de deveres aptos a ensejar a responsabilização do administrador, há ainda que se destacar a vedação de que o administrador atue em situações em que seus interesses conflitem com os da empresa. Nestes casos, o administrador deverá cientificar os demais administradores e afastar-se da operação social em que constatou o conflito.
A contratação entre sociedade e administrador, por sua vez, poderá ocorrer, desde que em “condições razoáveis ou equitativas” em que o administrador não aufira vantagens distintas daquelas auferidas por terceiros caso a contratação se desse com outra pessoa. Nestes casos, a contratação será nula.
Por fim, vale mencionar que também são impostos limites à atuação do administrador com base nos poderes a ele outorgados pela companhia. Limites estes que se ultrapassados poderão ensejar sua responsabilização. O art. 154 da LSA, ao instituir o dever de diligência fixa os limites gerais de atuação do administrador com base nos fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem comum e da função social da empresa. Deste modo, sem prejuízo de demais limitações instituídas pela empresa, o administrador está deve agir e respeito ao objeto social e ao estatuto da companhia, bem como, evidentemente, à Lei. Caso venha a se desviar destes parâmetros, cometerá os chamados atos ultra vires, dos quais será responsável perante a sociedade.
Nestas situações, haverá abuso de poder por parte do administrador, espécie de ilícito que se divide nas práticas de excesso de poder e desvio de poder. A primeira é a que ocorre naquelas situações em que o ato exercido pelo administrador extrapola os limites de sua competência, definidos pelo estatuto e pela lei, ainda que tais atos pudessem ser tomados por outros agentes ou órgãos como o Conselho de Administração. A segunda se dá nos casos em que a atuação do gestor excede os limites do objeto social da empresa. Em ambas as situações, a sociedade não poderá ser responsabilizada por tais atos, por se tratarem de atuação do administrador fora dos limites de atuação a ele concedidos pela empresa[5] (CAMPINHO, 2023, p. 100)
1.2. Responsabilidade
Os desvios dos deveres supracitados geram consequências, cuja aferição da responsabilidade passa a ser buscada.
O art. 158 da LSA determina as regras gerais de responsabilidade do administrador. Tem-se que ele não será responsável pelas obrigações que contrair pela empresa praticando atos regulares de gestão, mas sim quando agir com culpa ou dolo, mesmo dentro de suas atribuições (inc. I) ou descumprir a lei ou o estatuto (inc. II).
Constata-se, portanto, que a regra geral da responsabilidade do administrador é a responsabilização subjetiva (que exige a comprovação de que o administrador teve a intenção de agir de modo irregular – dolo –, ou, ao menos que agiu de modo descuidado – culpa). Também se trata de responsabilidade personalíssima, uma vez que o administrador só responderá pelos atos que praticar pessoalmente. Isto não significa, entretanto, que o administrador possa se manter inerte caso constate a presença de alguma irregularidade na empresa. Nestes casos, poderá o gestor ser responsabilizado quando for conivente com desvios de outros administradores, deixar de evitá-los se possível ou negligenciar em descobri-los.
Por fim, deve-se destacar que a LSA traz também excludentes de responsabilização. A primeira, com base na business judment rule (art. 159, § 6°) estabelece que a responsabilização não pode se dar em razão dos resultados auferidos pela empresa, mesmo que desastrosos, caso o administrador tenha agido conforme a boa-fé objetiva e os interesses da companhia, no mesmo sentido do que já afirmamos sobre o dever de diligência Isto ocorre, pois não é atribuição do juiz avaliar se as decisões do administrador estão em conformidade com as regras do mercado, mas tão somente com as regras jurídicas.
A outra hipótese de exclusão se dá quando as demonstrações financeiras e as contas do administrador forem aprovadas sem reserva em assembleia, exceto nas situações de erro, dolo, fraude ou simulação (art. 134, § 3°).
1.3. Ação de Responsabilidade
A legitimidade para ajuizar a ação de responsabilidade do Administrador é da companhia, que deverá previamente aprovar por maioria em assembleia o ajuizamento da ação. Aprovado o ajuizamento, o administrador terá seus poderes cessados e os demais administradores poderão se dirigir à Justiça. No caso de inércia dos administradores após a aprovação pela assembleia do ajuizamento da ação por mais de 3 meses, esta poderá ser interposta por qualquer sócio. Neste caso, há substituição processual, com o sócio agindo em nome próprio, mas nos interesses da companhia.
Já nas situações em que a assembleia não aprovar o ajuizamento da ação de responsabilização do administrador, há ainda outra hipótese de substituição processual da empresa pelos sócios, que poderá ocorrer com a interposição da ação pelos sócios responsáveis por ao menos 5% (cinco por cento) do capital social. Como em todos os outros casos, a indenizada será a sociedade, porém, os sócios que ajuizaram a ação poderão ser ressarcidos dos valores que empregaram no processo.
Há ainda as hipóteses em que o dano causado pelo administrador afeta diretamente o acionista e não a empresa. Nestes casos, o sócio poderá interpor ação em nome próprio, independentemente da empresa (LSA, art. 159, § 7°).
2. Responsabilidade do administrador nas Sociedades Limitadas
A responsabilidade do administrador nas Sociedades Limitadas é regida pela aplicação subsidiária das normas relativas à Sociedade Simples, uma vez que o regramento específico das Sociedades Limitadas (Código Civil, arts. 1.052-1.087) não dispõe sobre o tema. Ainda, em situações excepcionais, o art. 158 da LSA poderá ser aplicado analogicamente, razão pela qual estudamos primeiramente as regras de uma S/A.
Similarmente ao ocorrido nas S/A (LSA, art. 153), o art. 1.011 do Código Civil estabelece que o administrador deverá agir com “o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”.
Já as limitações aos poderes do administrador encontram-se no art. 1.015 do CC, que por sua vez, estabelece os limites dos poderes do administrador pautando os poderes de gestão ordinários, com a vedação de oneração ou venda de bens imóveis sem autorização específica da maioria dos sócios, quando isto não for a atividade prevista no objeto social.
Os atos ultra vires (aqueles que extrapolam o objeto social da sociedade) seguem o mesmo regime observado nas Sociedades Anônimas, de modo que, com a revogação do parágrafo único do art. 1.015 do CC, tem-se que os atos ultra vires do administrador serão inoponíveis a terceiros de boa-fé, sendo, portanto, responsável também a sociedade, que apenas terá direito de regresso contra o administrador. Entretanto, como já colocado, isso poderá ser afastado quando as circunstâncias do negócio permitirem concluir que o a pessoa lesada pelos atos ultra vires tinha consciência (ou deveria ter) de sua irregularidade. Isto ocorrerá, por exemplo, nos negócios jurídicos de grandes cifras, em que se requer grande diligência por parte dos contratantes, o que envolve analisar a regularidade da conduta dos agentes da sociedade com que se contrata.
Similarmente ao ocorrido nas S/A, a aferição da responsabilidade do administrador passará pela análise se este agiu de acordo com a boa-fé objetiva (padrão de conduta proba e honesta), de forma refletida e desinteressada e não pelos resultados econômicos obtidos. Neste sentido, o art. 1.016 do CC estabelece que os administradores responderão perante a sociedade e a terceiros quando agirem com culpa (modalidade de responsabilidade caracterizada pela imprudência, negligência ou imperícia) no exercício de suas funções.
O art. 1.017 do CC, por sua vez veda a aplicação indevida de créditos e bens da sociedade em proveito do administrador ou de terceiros sem consentimento dos sócios. Nestas situações, os bens e créditos deverão ser restituídos juntamente com os eventuais lucros e, em caso de prejuízo, o deverá o administrador por eles responsabilizar-se.
Similarmente ao que ocorre nas S/A, os administradores só responderão por atos próprios, eximindo-se da responsabilidade quando fizerem constar em ata sua discordância em relação ao ato irregular.
[1] Em Portugal, por exemplo, o termo “personalidade jurídica” é usado tanto para as pessoas singulares (o equivalente à nossa figura da pessoa natural), nos termos do n.º 1 do art.º 66.º do Código Civil português, quanto para as pessoas coletivas (artigos 157 e seguintes do Código Civil português).
[2] Ato separado é considerado um evento que não implica alteração do contrato social, mas cuja aprovação deve ser arquivada na Junta Comercial, como uma Ata de Reunião de Sócios. Além disso, nos termos do artigo 1.062 do Código Civil, o administrador designado em ato separado investir-se-á no cargo mediante termo de posse no livro de atas da administração.
[3] “Art. 155. O administrador deve servir com lealdade à companhia e manter reserva sobre os seus negócios, sendo-lhe vedado:
I – usar, em benefício próprio ou de outrem, com ou sem prejuízo para a companhia, as oportunidades comerciais de que tenha conhecimento em razão do exercício de seu cargo;
II – omitir-se no exercício ou proteção de direitos da companhia ou, visando à obtenção de vantagens, para si ou para outrem, deixar de aproveitar oportunidades de negócio de interesse da companhia;
III – adquirir, para revender com lucro, bem ou direito que sabe necessário à companhia, ou que esta tencione adquirir”.
[4] O art. 245 da LSA caminha no mesmo sentido, nos contextos de grupos empresariais, vedando o favorecimento de uma empresa em detrimento de outra do grupo.
[5] A exceção a essa regra ocorre perante terceiros de boa-fé, ou seja, que desconheçam a irregularidade da conduta do administrador. Todavia, nestes casos, a presunção de boa-fé poderá ser afastada caso a situação concreta permita concluir que o ente lesado sabia que o administrador estava extrapolando sua competência. Como pontua Sérgio Campinho (2023, p. 100), estas situações são comuns no mundo corporativo, em que as grandes cifras envolvidas demandam diligências suficientes para que se constate que o administrador da empresa com que se contrata está excedendo seus limites.
REFERÊNCIAS
BARATA, Rodrigo Rentzsch Sarmento. Alcance subjetivo da desconsideração da personalidade jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
CAMPINHO, Sergio. Curso de direito comercial: direito de empresa. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book. ISBN 9786553627611.
CAVALCANTI, Eduardo Muniz M. Direito Tributário. Barueri: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9786559646203.
DINIZ, Gustavo Saad. Curso de Direito Comercial. Barueri: Grupo GEN, 2022. E-book. ISBN 9786559773022.
NEGRÃO, Ricardo. Curso de direito comercial e de empresa: teoria geral da empresa e direito societário. v.1. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553620681.
RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Desconsideração da personalidade jurídica e processo: de acordo com o Código de Processo Civil de 2015. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.
SCHOUERI, Luís E. Direito Tributário. São Paulo: Editora Saraiva, 2022.
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: teoria geral e direito societário. v.1. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553620551.